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David Capistrano Filho: saga e sonhos da juventude

Marcelo Mário de Melo*


Era uma vez um menino chamado David Capistrano da Costa Filho, que nasceu no Recife no dia 7 de julho de 1948 e morreu na cidade de São Paulo, no Hospital Sírio-Libanês, em 10 de novembro de 2000 . Em 1947, sendo presidente do Brasil o Marechal Dutra, tinha havido a cassação do registro do Partido Comunista. E como os pais de David - David Capistrano e Maria Augusta - eram comunistas, tiveram que fugir e viver na clandestinidade. O menino David, portanto, foi um comunista de nascença.

A partir de 1956, com Juscelino Kubitschek na presidência do Brasil, os comunistas passaram a viver uma semi-legalidade. A família Capistrano saiu dos esconderijos pelo sul do País e voltou a morar no Recife. Em 1962, com 14 anos de idade e estudando no Colégio Estadual de Pernambuco, Davizinho entrou na base comunista que ali funcionava, formada por 25 jovens.

Depois dos 17 anos, David morou nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde casou duas vezes, teve quatro filhos, foi líder estudantil, médico, jornalista militante, autor e editor de livros, articulador político, conferencista, secretário municipal de saúde, prefeito de Santos, consultor do Ministério da Saúde, sempre viajando pelo Brasil e pelo exterior. Mas essa parte da sua história é muito conhecida. E eu quero destacar aqui, com o coração lagrimando tristeza e saudade, a fase infanto-juvenil de David Capistrano Filho em Pernambuco.

As maiores amarguras e aventuras políticas de David começaram em 1964. No dia 1º de abril houve um golpe de estado no Brasil e foi metralhado numa passeata o seu maior amigo, Jonas Augusto, que tinha 19 anos e era companheiro da base do Colégio Estadual. Também morreu Ivan Aguiar, estudante de engenharia e comunista, além de um rapaz e uma moça nunca identificados.

David pai fugiu, Maria Augusta foi presa na polícia e Davizinho recolhido a um quartel do exército. Um dia, o coronel Ibiapina parou na sua cela e disse: "A culpa da sua prisão é do seu pai, um comunista irresponsável". Davizinho respondeu: "Meu pai é um homem bom e honesto". O coronel mandou que lhe tirassem o colchão, fazendo-o dormir no chão. Durante alguns dias repetiu a mesma pergunta e recebeu a mesma resposta. Davizinho terminou sendo transferido para o Juizado de Menores, preso entre meninos infratores. Libertado, tinha-se consumido o semestre escolar e ele se concentrou nos estudos para passar de ano no Colégio

Depois do golpe, David intensificou a atuação política: rearticulando o setor secundarista, publicando jornais, fazendo pichações e panfletagens e participando das infindáveis discussões internas do PCB, em torno da interpretação do golpe e dos rumos a seguir na nova conjuntura política. Em 1965 ele participou de um concurso estudantil de oratória, com o tema da prostituição. No final desse ano David saiu de Pernambuco com Maria Augusta e as irmãs, Cristina e Carolina. A família ia se reunir com o pai. E David procurava escapar das garras do coronel Ibiapina, que havia prometido lhe prender quando completasse 18 anos. No Recife, David também atuou no Clube Literário Monteiro Lobato e na Associação Literária Machado de Assis, entidades juvenis.

Do Rio, David começou a se corresponder com um companheiro da base do Colégio Pernambucano, com quem fez amizade e atuou intensamente no período posterior ao golpe militar. Ele usava o pseudônimo de Jansen e, o amigo, o de Radiel. Trocaram dezenas de cartas, de janeiro de 1966 a julho de 1968. Os dois fizeram opções políticas diferentes dentro da esquerda, encontraram-se em plena divergência e mantiveram a amizade. Radiel foi feito preso político em Pernambuco e, num dia de visita, na década de 70, recebeu do amigo Jansen, pelas mãos de uma amiga comum, uma cartinha indicando a sequência para a deglutição competente de uma cesta de doces, bolos, queijos, cremes e guloseimas que lhe enviava de São Paulo.

Depois de 1979 os dois amigos se reencontraram, trocaram novas cartas e passaram a se ver sempre que podiam, morando em estados diferentes. No dia 12 de julho de 1982, atacado de leucemia, David fez um tratamento com cobalto e escreveu do hospital: "Continuo batalhando aqui no meu leito de doente. Já são 19 dias de internação. Já estou quase careca. Mas melhoro. Confio que irei para casa dentro de uns dez dias, mas ou menos. Acho que vou ficar bom. Não me sinto fadado a morrer jovem".

Lendo-se as cartas de Jansen para Radiel, pode-se ver que, do adolescente ao homem maduro, David Capistrano Filho manteve uma linha de coerência e compromisso com as suas referências fundamentais - a esquerda, o socialismo, a democracia, o povo, a saúde pública, a arte, a cultura, a família e a amizade. Ainda conversei com ele por telefone, no seu leito de doente, depois do transplante de fígado, logo após os resultados das eleições municipais. Ele estava vibrando com a chegada de João Paulo ao segundo turno no Recife e falou em fazer uma gravação de apoio.

E agora dou a palavra ao próprio David, com citações de suas cartas:

"Plantaremos mangueiras, caramboleiras, belos laranjais. Haverá frutas com fartura, verduras, cereais, legumes, milho a perder de vista, arroz e todas as coisas boas e bonitas" ( janeiro de 1966)

" ...a minha esquerda à aquela alegre, amante da vida e de suas boas coisas - o vinho, a comida, as mulheres (ou os homens), as crianças e as brigas".... " Sem generosidade, vamos para o buraco" (abril de 1982)

"A comunicação - colaboração - compreensão é a coisa mais maravilhosa que existe!" (janeiro de 1966)

" Só me sinto homem, radicalmente distinto de todos os animais, na condição de amigo. A mais alta e a mais dignificante das condições: amigo. E comuna. Amigo, amigo-comuna, comunas." (março de 1966)

"... A franqueza é a grande arma com que se conquistam as grandes amizades. Sejamos, pois, bem francos um com o outro" (julho de 1966).

Na sua última cirurgia, David Capistrano Filho, que tanto reverenciava a amizade, recebeu a doação de meio fígado do médico Davi Rumel, que nesses tempos cinzentos de cólera plasmou com generosidade e afeto uma história de amigos figadais.


Publicado no Jornal do Comércio, Recife-PE, Ed 6/12/2001


*Marcelo Mário de Melo é poeta