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O coração é vermelho e do lado esquerdo

Claudio Maierovitch*



David Capistrano Filho não conhecia o medo. Venceu a morte mais de uma vez, perseguido pela repressão ou pela leucemia. Talvez isso lhe desse a sensação de imortalidade, e era essa sua disposição para a luta e para a vida, a de quem nunca temia o que enfrentava.

Mas ousadia era o pano de fundo vermelho que acompanhava todos os cenários de sua atuação. David era avesso a conciliações, achava que as diferenças e polêmicas deviam sempre ser explicitadas e estimuladas, sendo os motores da transformação. O exercício da dialética impregnava sua alma. "A realidade não pode ser tratada como se fosse morna, como se o sofrimento e a morte fossem coisas naturais sobre as quais pode-se ficar evitando os confrontos, buscando consensos..."

Comunista de todas as horas, praticava o conflito, revoltava-se com o que chamava de americanização do processo político, quando as mais diversas correntes políticas brasileiras passaram a guiar-se por "pesquisas qualitativas", dizendo ao povo, nas campanhas de TV, o que este queria ouvir, abrindo mão de disputar idéias, de transformar a cultura e contrapor-se às convicções hegemônicas.

Assim, colecionou críticos entre aliados que não o compreenderam e admiradores entre seus adversários. Na posição de mais elevado "status" público que ocupou, fez pela população e pela cidade mais do que qualquer governante fizera em um governo, realizações que foram projetadas e reproduzidas mundo afora. Conseguiu mobilizar a máquina pública, os funcionários e a comunidade em torno de causas que revelavam seu radicalismo humanista, como o combate à fome, ao desemprego, à dependência de drogas e ao abandono, a garantia da habitação, da escola e da saúde pública com qualidade.

David pegou-nos de surpresa quando determinou que a Secretaria de Higiene e Saúde de Santos fornecesse o chamado coquetel de drogas para todos os pacientes com AIDS de Santos que tivessem indicação, contrariando a própria proposta que lhe fora apresentada de incluir um grupo menor, respeitando o limite das possibilidades financeiras. Sabia, como ninguém, que aquelas pessoas não podiam esperar. De fato, somente um ano depois, em 1997, o Governo Federal passou a arcar com os custos do tratamento, estimulado, inclusive, pela experiência santista.

Devo-lhe boa parte de meus cabelos brancos, mas também os mais preciosos ensinamentos que podia ter em minha vida profissional. Certamente também ajudei a aumentar suas rugas na testa. E assim fomos construindo uma intimidade fraterna, no calor das lutas comuns, de nossas freqüentes divergências e das utopias compartilhadas.

David, claro, acreditava na finitude de sua vida, agia sempre como se não lhe restasse mais do que um dia, mas confidenciava sua esperança de que a ciência não tardaria muito a fazer o transplante de memória. Deixou-nos essa missão, essa nossa multidão de transplantados agora tem, mais do que nunca, a responsabilidade de seguir com a luta da justiça, da liberdade, da eqüidade, da transformação do mundo, a luta dos "de baixo", a luta do David.


*Diretor-Adjunto da Agência nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA