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"Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua fortuna está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio".

(José Luiz Borges: Fragmentos de um Evangelho Apócrifo, versículo 11)

José Serra*

Eu havia cruzado com o pai nos idos de 1963/64, quando, na presidência da UEE de São Paulo e da UNE, participava da intensa agitação política da época. Dez anos depois, a vaga lembrança do dirigente comunista transformara-se em algo mais definido. Em 1974, David Capistrano desapareceu, assassinado por agentes da ditadura. A partir daí, em minha mente, ele passaria a integrar a lista daqueles que eu tinha conhecido, alguns amigos próximos, dedicando sua vida a uma causa generosa e sofreram, por isso, um cruel sacrifício.

Em 1983, quando começava o governo Montoro em São Paulo, prestei uma atenção especial ao outro David Capistrano, o filho. Eu era secretário de Economia e Planejamento do governo e, na prática, o principal negociador com o funcionalismo inquieto. Era lógico: depois de 19 anos de demandas represadas pelo autoritarismo, a expectativa, diante de um governo democrático, era de pronto e substancial atendimento salarial. Mas naquele momento e depois da devastação malufista no Estado, não havia dinheiro em caixa nem receita previsível para satisfazer as demandas. Esse era o objeto da conversa e das análises naquela noite, numa reunião discreta com dirigentes do PCB, entre eles, o Davizinho, como ainda era chamado. Identifiquei já nessa ocasião, seu estilo: analítico, entendia o ponto de vista dos outros, expunha os seus e propunha saídas.

Pouco mais de um ano depois, procurou-me o Tuga Angerami, prefeito de Bauru: o David tem de ir aos Estados Unidos tratar-se, está com câncer, precisa de um transplante de medula e você poderia ajudar. Claro. Procurei o governador Montoro perguntando se ele autorizaria que encontrássemos uma forma de custear o tratamento lá fora. Montoro concordou na hora e fomos em frente.

Depois da cura, acompanhei sua trajetória, em Bauru, no PT e em Santos. Pouco antes de deixar o Ministério do Planejamento, em meados de 1996, estive nessa cidade para um seminário sobre o sistema portuário. Ele exercia seu último ano de mandato. Num quarto de hotel, nos reunimos a sós durante uma hora para analisar a situação do país e do governo. David mantinha o estilo: analisava o Brasil, expunha sua preocupação com o desemprego e suas conseqüências e sugeria o que era importante fazer para influenciar o governo nesta ou naquela direção. Além de opinar enfaticamente contra a idéia de eu me afastar do governo para disputar a prefeitura de São Paulo.

No começo de 1998, David procurou-me para convencer-me a aceitar o Ministério da Saúde. Foram duas ou três conversas longas. Seus argumentos se desdobravam: acreditava que seria bom para o SUS, mas também para minha trajetória política. O setor da saúde era problemático, mas havia um enorme potencial para que melhorasse muito.

Sua força de persuasão foi um dos fatores que me levaram a aceitar o cargo, em abril, assumindo a área considerada mais difícil do setor público federal. Lembro que, logo, enviei-lhe cópia de meu discurso de posse, que ele gostou bastante. Pouco tempo depois, fui abrir a Campanha de Vacinação contra a Pólio em São Paulo, numa sede de equipes de saúde de família do governo Mário Covas - dentro do programa que, em São Paulo, foi denominado Qualis. O David era o coordenador do programa; mostrou-me o lugar, explicou como funcionavam as equipes e entusiasmou-se quando lhe disse que havíamos tomada a decisão de transformar o Programa de Saúde de Família na principal ação do Ministério em relação à estrutura do sistema de saúde.

Também em São Paulo, na zona leste da cidade, fui inaugurar uma Casa de Parto, coordenada pelo David. Gostei tanto da iniciativa que decidi ampliá-la nacionalmente, pedindo a ele que articulasse o novo programa. Acabei trazendo-o para a assessoria do Ministério, trabalhando mais próximo do meu gabinete. Pouco a pouco, o novo programa foi tomando forma, graças a mobilidade do David, que percorreu todo o país, definiu prioridades e foi vencendo ciumeiras.

Lembro-me que, em meados de 1999, convidei-o para integrar a delegação brasileira na Assembléia da Organização Mundial da Saúde. Em Genebra, fomos os dois almoçar num pequeno restaurante italiano na cidade antiga. David era só idéias, análise política, estratégia, sugestão de rumos. Esses foram temas recorrentes de nossas conversas ou, mais ainda, de seus memorandos e documentos que não deixou de enviar-me até internar-se no hospital para o transplante.

Mas foi em Genebra, quando procurávamos o restaurante, subindo e descendo ladeiras, ele anormalmente ofegante, que me dei conta de sua fragilidade física. Desde que o reencontrara, em 1998, eu manifestava preocupação por sua saúde, ele não parecia bem. Sua reação, no entanto, era sempre a mesma: tudo sob controle.

Depois de recuperar-se do estado de coma que sofreu, na Bahia, notei-o mais realista, apreensivo. Mesmo assim, ele ainda continuava movimentando-se pelo Brasil afora, atrás das casas de parto. De fato, não se impunha limites. Não estava acostumado a isso.

Encontrou tempo, ainda, para convencer-me da importância da Conferência Nacional da Saúde e de insistir para que eu juntasse num livro artigos e textos de palestras que eu escrevera ao longo de minha gestão. Ofereceu-se para fazer a seleção, tarefa que chegou a cumprir; pedi-lhe que escrevesse a introdução. Não sabemos se chegou a fazê-la; por isso, pedimos ao Sérgio Gomes que a procurasse entre os escritos deixados por David no computador.

Chegou a escrever-me um documento contendo um plano de ação política detalhado e propôs que o discutíssemos em São Paulo. Mas argumentei que ele não devia fazer mais esforços, devia concentrar-se na preparação para o transplante. Conversaríamos, faríamos "n" reuniões depois que ele estivesse bem. A última vez que falamos foi quando telefonei para tranqüilizá-lo sobre a cobertura da Seguradora do Bradesco para toda a cirurgia. David era um lutador pela justiça social considerado completo. Era um quadro, disciplinado, mas não um homem de aparelho, como ainda são alguns dirigentes da esquerda. Tinha idéias, formava seguidores, trabalhava em equipe e batalhava por elas. Enxergava o todo e as partes. Tinha formação intelectual e especialização profissional. Batalhava pelas grandes e pelas pequenas causas.

Quando o Luiz Eduardo Greenhalgh me telefonou para dar a notícia, naquela sexta-feira à noite, no caminho do hospital, lembrei-me de uma poesia do Manuel Bandeira, a que fiz alusão quando falei no funeral: David não havia morrido, mas se ausentado. Sua vida continuaria na vida que ele viveu. Na sua família, nos amigos, nos seguidores, nas idéias, na obra, no exemplo.


*Ministro da Saúde



Fonte: O Estado de S. Paulo - 19.11.2000