A Comunicação e a Redemocratização do Brasil

A Comunicação e a Redemocratização do Brasil

Prefácio – Antônio Martins

Certas batalhas têm o encanto de recuperar atualidade e renascer mais fortes, cada vez que as julgamos superadas. No início dos anos 70, auge da ditadura militar, surgiu na USP A Ponte, um exemplo do que havia de melhor na imprensa estudantil de resistência. Escrito e desenhado por alguns dos profissionais que hoje se reúnem em torno do projeto OBORÉ, o jornal era instigante, avançado e atraente. Fazia a denúncia política da ditadura, mas rejeitava o panfleto. Tinha verve, espírito, humor, bom texto. É uma alegria saber que, trinta anos depois, uma nova geração de jornalistas e estudantes retoma o sonho e a luta da imprensa independente.

Aos poucos vão ficando claras as identidades entre as duas épocas. Ninguém mais é morto ou torturado por defender idéias. Há eleições multipartidárias. Mas, como destacou o escritor José Saramago num texto recente, a política foi esvaziada e a democracia foi reduzida a um teatro, uma espécie de “missa laica”. Comparecemos regularmente às urnas, mas sabemos que nos restou a escolha de um poder menor. As grandes decisões — as que mudam a vida de centenas de milhões de pessoas — são tomadas por organismos imunes à ação e também à informação dos cidadãos. Quem sabe o nome dos representantes do Brasil junto ao FMI? Quando o Parlamento brasileiro debateu em profundidade a política do país em relação à OMC? A que tribunal podem recorrer as vítimas dos grandes crimes econômicos, como os ataques especulativos contra economias nacionais ou as demissões em massa decretadas pelas corporações transnacionais?

A comunicação cumpre, nesta farsa, um papel essencial. Embora as condições de acesso ao público fossem sempre desiguais, o jornalismo era visto, desde a Revolução Francesa, como um instrumento da democracia. Cabia a ele oferecer à sociedade as informações e os pontos de vista necessários para participar da vida pública e optar, nas eleições, por um ou outro projeto. Por isso, jornal foi, durante alguns séculos, quase sinônimo de debate de idéias. Esta noção dissolveuse nas últimas décadas e foi rapidamente substituída pela de mercadoria. Para o capitalismo contemporâneo, a imprensa é um negócio como outro qualquer. O objetivo de quem entra no ramo é ganhar dinheiro, controlar mercados, associarse a outros grupos poderosos. Que jornal brasileiro foi crítico às privatizações, ou ao menos informou adequadamente sobre os riscos que elas envolviam?

Para cada época, suas resistências e utopias. Na década de 70, sonhava-se, na América Latina, viver em países sem repressão e escrever era parte desta luta. A partir dos anos 90, espalhouse pelo mundo a idéia de uma nova imprensa independente. Embaladas pela crítica ao neoliberalismo, surgiram centenas de novas publicações. Algumas têm versões impressas; muitas velejam nas águas da internet, onde ainda é possível escapar dos monopólios. São tão diversas como os Fóruns Sociais Mundiais. Dedicamse a centenas de causas distintas. Não formam, ainda, uma rede, mas têm uma identidade clara. Recuperaram a crença na antiga noção de jornalismo como um meio de despertar a sociedade. Vêem a informação como um direito. Estão dispostas a lutar por ele.

Este movimento tem eco no Brasil. Mesmo que o número de novas publicações ainda seja pequeno, é nítida, nas escolas de jornalismo, uma mudança de ares. Ao contrário do que ocorria há pouco, ninguém se ilude com a “grande” imprensa, e muitos procuram construir alternativa a ela.

O Coletivo Intervozes é uma das expressões dos novos tempos. A partir dos encontros de estudantes de comunicação social, formouse uma rede de jovens empenhados em se aproximar das lutas sociais. Não se conformam com o fato de a imprensa ter se transformado, no Brasil, em máquina de propaganda e alienação. Querem uma espécie de resgate, em favor do país e de si mesmos.

Promovem reuniões lendárias, como a de Marataízes. Mais recentemente, assumiram papel de elo, na batalha para que algo mude, nas comunicações brasileiras, sob o governo Lula. Um seminário realizado por eles em favor da idéia, no Fórum Social Brasileiro (Belo Horizonte, 9 de novembro de 2003), reuniu a maior parte das publicações independentes, atraiu um público numeroso e decidido, abriu a possibilidade de uma campanha nacional sobre o tema.

Nada mais emblemático que ter nascido, do encontro entre OBORÉ e Intervozes, um curso em que se debateram os impasses e as saídas para comunicação, numa época marcada pelo risco de barbárie – mas também pelo ressurgimento da utopia. Um dos sinais mais promissores desta retomada é o fato de ela suscitar de novo o gosto pelo conhecimento, a valorização da dúvida, o desejo de refletir sobre o mundo, para não viver passivamente. Olhar nos olhos dos nossos dramas, ensinou o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, é meio caminho andado para vencêlos. Que este primeiro curso seja também ponte: para unir as gerações que lutam por um jornalismo digno deste nome no Brasil; e para nos projetar, juntos, rumo a um país para todos, onde conhecer a realidade seja um direito tão inalienável quanto o de transformála.

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