14/10/2025

Um olhar humanizado deve guiar cobertura de conflitos armados

Ouvir as histórias das pessoas afetadas é fundamental na cobertura de conflitos. A indicação foi defendida por Sarah Davies, porta-voz do CICV em Gaza, e pelos jornalistas Mayara Paixão e Lalo de Almeida durante o 24º Curso de Jornalismo em Guerra e Violência Armada.

Por Thaís Manhães.

Neste sábado, 11, ocorreu a terceira aula do 24º módulo de Jornalismo em Guerra e Violência Armada, uma parceria entre a OBORÉ e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Sarah Davies, porta-voz do CICV alocada em Israel e Gaza, a jornalista Mayara Paixão e o fotojornalista Lalo de Almeida foram os conferencistas convidados.

O encontro, mediado por Aldo Quiroga, jornalista e editor-chefe da TV Cultura, foi dividido em dois painéis, seguidos de entrevista coletiva com os convidados. No primeiro painel, a porta-voz compartilhou como é exercer a função em zonas de conflitos, falou sobre o uso das redes sociais, apontou o risco das informações prejudiciais e a aplicação da Inteligência Artificial nestas narrativas.

Cobertura humanizada

Davies, que atua no CICV desde a escalada do conflito entre Hamas e Israel, destacou que é importante para o jornalista que cobre guerras evitar retratar as pessoas afetadas apenas como vítimas.

Após as conferências com os convidados, os estudantes têm quatro dias para produzir uma peça jornalística sobre o encontro e enviá-lo para a coordenação pedagógica do curso. Esta faz parte da metodologia dos cursos oferecidos pelo Projeto Repórter do Futuro, da OBORÉ.

“Todas elas têm histórias, e todas essas histórias são individuais, sobre como suas esperanças e seus sonhos eram antes da escalada, e o que se tornaram agora”, afirmou Davies, reforçando a responsabilidade jornalística de uma cobertura humanizada, e comparando esse ponto de vista com a atuação da mídia no início do conflito.

“Famílias, comunidades, vizinhanças, todas elas têm seu próprio universo. Quando o conflito iniciou de forma tão violenta, foi muito fácil para todo o mundo ver essas pessoas como vítimas, sem rosto, sem nome. Isso não é verdade, não é o que elas são”, continuou a porta-voz defendendo a contribuição dos workshops do CICV para a conscientização de jornalistas sobre este tema.

Jornalismo e narrativas individuais

Durante o conflito entre Israel e o Hamas, houve casos de jornalistas mortos e restrições à entrada da imprensa em zonas de guerra. Até hoje, jornalistas internacionais estão impedidos de entrar em Gaza. Neste sentido, a porta-voz apontou o desafio do “jornalismo cidadão”, em que pessoas afetadas pelo conflito passam a relatar o próprio dia a dia por meio de aparelhos celulares.

Apesar de ampliar o acesso à informação, esses relatos dos afetados pelo conflito distribuídos via redes sociais, por exemplo, não são considerados confiáveis, pois não têm o filtro profissional do jornalismo. Somam-se a isso os riscos do mau uso de ferramentas de Inteligência Artificial para criação de falsas narrativas, e dispersão das informações prejudiciais, tema abordado na segunda aula deste módulo.

A verificação das histórias

Neste contexto, Davies enfatizou a importância do trabalho do CICV enquanto uma organização profissional de mediação presente em situações de conflito.

“Quando nós falamos algo que possa ser dito ‘on the records’ [dito publicamente], ou que podemos mostrar de antemão, ou seja, nós filmando, registrando ou conversando com os civis ou com a nossa própria equipe, isso tem um peso”, afirmou a porta-voz, justificando a atuação profissional na guerra.

Segundo ela, um dos desafios para os jornalistas que atuam nestes contextos é a verificação das histórias.

“As histórias em campo são muito difíceis de serem verificadas, porque você está falando com pessoas que viveram coisas terríveis, que perderam membros das suas famílias, e você vai pegar aquela posição através daquela lente”, completou Sarah Davies, que conversou com o grupo de 50 estudantes desta 24ª edição do curso a partir de Tel Aviv.

A porta-voz estava de sobreaviso, já que no dia anterior, 9 de outubro, Israel aprovou o cessar-fogo com o grupo palestino Hamas, que tem a libertação de pessoas mantidas como reféns como parte do acordo. A função do CICV, uma organização neutra humanitária, é facilitar o trânsito destas pessoas, garantindo segurança e dignidade aos reféns.

O segundo painel

No Brasil, a jornalista Mayara Paixão e o fotojornalista Lalo de Almeida foram os convidados para o segundo momento da coletiva. Com a reportagem “Darién, a selva da morte” (Folha de S.Paulo), Mayara e Lalo ganharam a sexta edição do Prêmio CICV de Cobertura Humanitária Internacional, em 2024.

Paixão abriu o painel, e falou sobre a cobertura da migração na América Latina destacando a técnica jornalística e colocando as pessoas afetadas como pontos centrais desta cobertura.

Desde 2020, Mayara Paixão é repórter da Folha de S.Paulo. Já trabalhou na editoria internacional e foi correspondente para a América Latina em Buenos Aires. Fez reportagens de países como Venezuela, México, Guiana Francesa, Equador, Bolívia, Uruguai, Colômbia e outros. Seu trabalho já foi publicado também na Repórter Brasil, Nexo Jornal, Latin American News Dispatch e Abraji.

“Essa é sim uma cobertura humanitária, mas quando a gente fala de cobertura humanitária isso não quer dizer que a gente não precisa ter técnica, que a gente não precisa estudar muito, e que a gente não precisa ter muito conhecimento. A nossa dedicação mostra a relevância que a gente dá ao tema que estamos cobrindo, e nesse caso mostra a relevância que a gente dá às pessoas, aos migrantes que estão nesta situação”, afirmou a jornalista.

Durante o encontro, não como uma “receita” mas para compartilhar experiências, Paixão elencou algumas dicas práticas para a cobertura de migração na América Latina. São elas:

  • Monitorar os dados;

  • Tornar os dados visuais na peça jornalística;

  • Monitorar as políticas públicas.

Outro ponto destacado pela jornalista foi a importância dos estudantes se especializarem em uma área de cobertura jornalística, o que pode abrir muitas portas no mercado.

Protocolos de segurança

Com quinze anos de cobertura da Amazônia, Lalo de Almeida compartilhou acertos e erros de sua carreira. Relembrou diversos riscos que já enfrentou em diferentes projetos de cobertura na floresta, e a partir dessas experiências, o fotojornalista destacou a importância dos protocolos de segurança para preservar a vida e bem-estar dos profissionais.

“Essa cobertura amazônica é desafiadora em muitos sentidos. Ela não é uma violência como se você estivesse em uma zona de guerra, mas é uma violência silenciosa. ‘A coisa’ está sempre ali te esperando. Essa é uma sensação muito presente”, contou o fotojornalista.

Lalo trabalha para a Folha de S.Paulo há 27 anos, e produziu narrativas multimídias que foram premiadas internacionalmente, como "Um Mundo de Muros" e a "Batalha de Belo Monte".

“Quando eu vou, por exemplo, fotografar uma área desmatada, ou estou indo num garimpo, ou no ramal da BR 319, da Trans Amazônica, a sensação que eu tenho é que tem sempre alguém me esperando na próxima curva”, complementou afirmando que é uma região muito complexa para trabalhar, e para isso é necessário seguir protocolos de segurança.

“É uma violência camuflada e que basta uma fagulha para a coisa desandar muito rapidamente e ficar fora de controle”, explicou relembrando o assassinato do jornalista Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, em 2022.

Momentos finais

Esta foi a penúltima aula do 24ª Curso de Jornalismo em Guerra e Violência Armada, uma parceria de mais de duas décadas entre a OBORÉ e o CICV. O encontro de encerramento ocorre no próximo sábado, 18 de outubro.

No decorrer desta edição, especialistas de diferentes áreas de atuação participaram de conferências de imprensa com os 50 alunos selecionados.

No primeiro momento de cada encontro, os estudantes participam de conferências de imprensa com os convidados sobre diversos temas, e na sequência, o conferencista participa de uma entrevista coletiva. A ideia é estimular os estudantes a treinar a postura jornalística, necessária para o exercício da profissão. Afinal, jornalista é um ser que pergunta.

O jurista Tarciso Dal Maso, consultor legislativo do Senado Federal para Direito Internacional, foi o primeiro conferencista. Marcos históricos do Direito Internacional Humanitário (DIH), desafios que chegaram com a Inteligência Artificial, e a contextualização sobre os principais conflitos armados internacionais foram os tópicos centrais de seu painel.

Para a segunda aula, Edmar Martins, assessor do Programa com Forças Policiais, e Fabíola Góis, assessora de Comunicação Social, ambos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), foram os convidados. O tema dos painéis foram “normas internacionais aplicáveis ao uso da força e armas de fogo”, e “informações prejudiciais”.

Mais informações:

CICV - Delegação Regional para o Brasil e Cone Sul

Fabíola Góis, CICV Brasília - (61) 98248-7600,

E-mail: [email protected]

OBORÉ

Cristina Cavalcanti - (11) 2847.4567, WhatsApp: (11) 99320-0068,

E-mail: [email protected]

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