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O guerreiro da saúde


Luís Nassif*

Com a morte de David Capistrano Filho, não desaparece apenas o ex-prefeito de Santos, o ex-militante do PCB que ousou, nos anos negros da ditadura, enfrentar não só a repressão dos militares como o patrulhamento dos esquerdistas juvenis do movimento universitário, que não admitiam políticas de aliança.

Também a luta pela saúde do brasileiro perde um de seus guerreiros mais relevantes. Desde os anos 80, a saúde formou a mais relevante bancada de congressistas, juntando políticos e personalidades de diversas facções. Os sanitaristas brasileiros forneceram as idéias, a luta, o trabalho diário que ecoava por todas as consciências de homens públicos responsáveis. Não bastava apenas a consciência, era preciso o método e a criatividade para buscar formas sociais e baratas de levar a saúde ao povo.

Dentre todos, David Capistrano foi o principal estimulador das novas práticas de saúde. Em Santos, revolucionou o sistema de saúde. Depois, todas as grandes personalidades públicas da saúde -do ex-ministro Adib Jatene ao atual, José Serra- foram buscar em David as idéias e o apoio. E ele se atirou à empreitada com denodo, mesmo com a saúde abalada por anos de luta contra o câncer. Tantos problemas enfrentou que o que o mantinha vivo eram apenas os ideais.

Foi o principal incentivador do médico de família -programa no qual um médico se responsabiliza pelo acompanhamento de centenas de famílias-, das salas de parto -estruturas simples, com enfermeiras parteiras, para atender a periferia. Na recente onda petista, de vitória nas últimas eleições, certamente seria o elemento ideal para levar esses conceitos às novas prefeituras. O último encontro pessoal que tive com David foi no início do ano passado, em um almoço para ele falar sobre o programa "médico de família". Embora já abalado pela doença, falou com entusiasmo sobre os resultados alcançados.

A crise cambial do início do ano acabou desviando minha atenção para temas mais prosaicos, e não escrevi a coluna. Meses atrás, quando se preparava para o transplante do fígado, sabendo da gravidade da operação, escrevi pequena nota em sua homenagem. Ele ligou meio assustado, querendo saber o motivo da nota. Disfarcei. Disse apenas que me deu vontade de homenagear um homem público exemplar.

O sentido de irrelevância que marca a cobertura diária da mídia jamais conferiu a David -e à saúde- o espaço que merecia. Em geral, o destaque maior é para os profetas do curto prazo, especialmente aqueles que jamais conseguirão avançar além da mera visão fiscal da história. Então é bom que se diga em alto e bom tom: o país perdeu um grande brasileiro, um membro da pequena elite de cidadãos e homens públicos que teimaram em construir uma pátria.


*Jornalista, articulista da Folha de S. Paulo



Fonte: Folha de S.Paulo - 14.11.2000